Prefácio e Introdução

Matéria
HISTÓRIA DA IGREJA
Disciplina:
HISTÓRIA DA IGREJA ANTIGA

MATERIAL COMPLEMENTAR 01

Prefácio e Introdução

Conteúdo

1. Prefácio: Para Início de Conversa . .

2. Introdução: Por que Estudar a História da Igreja?

3. Notas

1. Prefácio: Para Início de Conversa . . .

Para ser cristã, uma pessoa precisa ter fé, em algum grau (entre outras coisas).

Para ser teóloga do Cristianismo, uma pessoa também precisa ter fé, em algum grau (novamente, entre outras coisas) – embora a questão aqui já não seja tão clara.

Para ser historiadora da Igreja Cristã e do Pensamento Cristão, porém, uma pessoa não precisa ter fé. Basta, além de preparo na área, ter interesse, curiosidade, um pouco de paciência, e gosto pela coisa. Na verdade, segundo alguns, a fé por vezes até atrapalha a objetividade e o ceticismo natural que devem nortear e conduzir o trabalho do historiador.

Para ler, apreciar e estudar a História da Igreja Cristã e do Pensamento Cristão, uma pessoa também não precisa ter fé. Mas precisa ter curiosidade e interesse em descobrir como é que um pequeno movimento, que surgiu, como uma seita judaica, dois mil anos atrás, na Palestina, entre os judeus (um povo já então desprezado e até odiado), e que foi liderada por um carpinteiro pobre, filho de mãe solteira, meio rebelde (segundo tudo indica), que resolveu sair a pregar pelas diversas províncias da região onde nasceu e morava, começando na Galiléia, e foi duro na crítica às lideranças de sua religião, e que viveu acompanhado de um bando de discípulos composto de gente simples e humilde, sem preparo intelectual, sem muita iniciativa, alguns dos quais se acovardaram quando seu líder foi preso e condenado à morte em Jerusalém (e morte na cruz, a forma mais dolorosa e humilhante de execução)… Precisa ter curiosidade e interesse em descobrir como é que esse pequeno “exército de Branca Leone” conseguiu sobreviver à morte de seu líder, fazer relativo sucesso na Palestina e entre os judeus da Diáspora, conquistar o mundo gentio, bem mais amplo, rico, e intelectualmente sofisticado, em  que imperava a decantada cultura Greco-Romana, mundo esse em que inicialmente foi perseguido, em parte pela sua postura rígida, intransigente, e intolerante, mas, em um pouco mais de três séculos, veio a ganhar reconhecimento e respeitabilidade como a religião oficial do Império Romano… Precisa ter curiosidade e interesse em descobrir como é que, quando o Império Romano desapareceu no Ocidente, esse grupo, então não mais tão pequeno, posto que todos no Império deviam integra-lo, passou a ocupar o lugar do Império desaparecido, tornando-se a mola propulsora da cultura Ocidental, que veio a ter influência em quase toda parte do mundo, até hoje, dois mil anos depois [1].

Se essa questão o intriga e fascina, a História da Igreja e do Pensamento Cristão é para você – mesmo que você não se considere cristão, nunca tenha lido seriamente a Bíblia, e não tenha nenhuma fé nos principais ensinamentos da Igreja.

Este livro é para quem tem curiosidade, é fascinado pelos enigmas da história, e gosta de pensar – no caso, sobre uma questão fascinante, que cobre dois mil anos da história da humanidade, abrangendo, inicialmente, umas poucas centenas e, gradualmente, alguns milhares de pessoas, mas que hoje se contam nos bilhões.

Arremato esse Prefácio com uma longa citação de Paul Johnson – grande historiador secular (que incidentalmente é cristão católico romano de tendência nitidamente conservadora):

“Pretendo apresentar [aqui] os fatos salientes [da História do Cristianismo] tal como são vistos e interpretados pelos estudiosos modernos.

Trata-se, pois, de uma obra de história. Pode-se indagar: é possível escrever sobre o cristianismo com o grau necessário de distanciamento histórico? Em 1913 Ernest Troeltsch argumentou, de maneira persuasiva, que os métodos céticos e críticos de pesquisa histórica seriam incompatíveis com a crença cristã; muitos historiadores e a maioria dos sociólogos religiosos concordam com ele. Há, decerto, um aparente conflito. O cristianismo é, por essência, uma religião histórica. Baseia suas alegações nos fatos históricos que declara. Se estes forem abolidos, ele não é nada. Assim sendo, poderá um cristão examinar a verdade desses fatos com a mesma objetividade que apresentaria com relação a qualquer outro fenômeno? Poder-se-á esperar dele que cave a sepultura de sua própria fé, se for esse o caminho aparentemente apontado por suas investigações? No passado, muitos poucos estudiosos cristãos tiveram a coragem ou a confiança de colocar a livre perseguição da verdade antes de qualquer outra consideração. Quase todos estabeleceram um limite em algum ponto. Não obstante, como seus esforços defensivos provaram-se fúteis! Como seu sacrifício da integridade parece ridículo, em retrospecto!

( . . . ) O Cristianismo, identificando verdade com fé, deve ensinar – e, adequadamente compreendido, de fato o faz – que qualquer interferência à verdade é imoral. Um cristão com fé nada tem a temer dos fatos; um historiador cristão que estabelece limites para o campo de investigação, em qualquer ponto que seja, está admitindo os limites de sua fé. E, naturalmente, destruindo a natureza de sua religião, qual seja, uma revelação progressiva da verdade. Por conseguinte, o cristão, a meu ver, não deve ser impedido, nem no mais leve grau, de seguir o fio da verdade; com efeito, é, positivamente, fadado a segui-la. De fato, ele deveria ser mais livre que o não-cristão, comprometido por princípio com sua própria rejeição. Em todas as circunstâncias, procurei apresentar os fatos da história cristã do modo mais verdadeiro e cru de que sou capaz, deixando o resto para o leitor.

Iver, Buckinghamshire, 1975”. [2]

É isso, para início de conversa… Assino embaixo.

Salto, SP, 21 de Novembro de 2016

Eduardo Chaves
Professor de História da Igreja / FATIPI

2. Introdução: Por que Estudar a História da Igreja?

Indivíduos e instituições têm identidade.

Nossa identidade, como indivíduos, está intimamente ligada ao conteúdo de nossa memória. E o conteúdo de nossa memória está intimamente ligado à nossa história. E nossa história é um resumo das partes mais relevantes e marcantes de nossa vida.

VIDA => HISTÓRIA => MEMÓRIA => IDENTIDADE

Assim, nossa identidade não cai pronta do céu: ela está ligada à nossa vida e, como esta, se constrói, historicamente, à medida que vivemos. Mas nem tudo o que acontece em nossa vida contribui para a formação de nossa identidade. Esta decorre daqueles episódios de nossa vida que, por alguma razão, foram preservados, seja na tradição oral de nossa família (os “causos” que correm de boca em boca), seja em anotações e documentos (como registros cartoriais, notas preservadas na capa de Bíblias, livros de ouro, diários e outros cadernos, textos diversos, e, desde há algum tempo, álbuns de fotografias, coleções de filmes e vídeos, etc.), episódios esses que passam a fazer parte de nossa história. Essa história, nós a absorvemos, mas de forma seletiva, retendo em nossa memória algumas coisas, esquecendo, deliberadamente ignorando ou mesmo desprezando outras, quiçá inventando algumas outras. Aquilo que a gente absorve e assimila, depois de feito esse crivo, fica gravado em nossa memória e, assim, acaba por fazer de nós o que somos hoje – amanhã poderemos ser diferentes: basta que incorporemos, pelo processo normal de viver, novos elementos à nossa memória, ou que descartemos (por esquecimento ou repressão) mais alguns, ou, sempre possível, que inventemos uns tantos outros!

A memória é uma das “faculdades” que temos que está a merecer estudo mais cuidadoso pelos pesquisadores – apesar dos grandes avanços feitos nos últimos tempos. Nossa memória não é uma máquina que fielmente registra e preserva todas as coisas que acontecem em nossa vida “do jeito exato que elas de fato aconteceram” (wie sie eigentlich gewesen sind), como dizia o historiador alemão Leopold von Ranke.

Em primeiro lugar, a memória é seletiva: ela não retém a lembrança de tudo o que se passa na nossa vida. Se, por exemplo, algo de muito ruim nos acontece, nossa memória às vezes reprime totalmente a lembrança do que se passou, isto é, faz de conta que o acontecido não se deu. Esse processo muitas vezes se dá sem que tomemos consciência de que esteja acontecendo, e não de forma intencional e deliberada.

Em segundo lugar, a memória nem sempre é totalmente fiel mesmo naquilo que ela preserva. Ela às vezes preserva uma lembrança um pouco distorcida do que aconteceu: uma versão mais dulcificada, mais facilmente digerível e assimilável pelo nosso ego. Em casos assim parece que ela tenta tornar a nossa vida mais fácil… Outras vezes, a distorção é na direção oposta: a memória preserva uma versão do que aconteceu que coloca um grande peso de culpa em nossas costas por coisas pelas quais não fomos culpados, ou não fomos tão culpados quanto nos lembramos. Em casos assim parece que ela tenta tornar a nossa vida mais difícil, punindo-nos pelo que não fizemos ou além do que merecemos…

Em terceiro lugar, a memória chega até mesmo a inventar lembranças, isto é, ela nos convence de que algo aconteceu conosco que, na realidade, não aconteceu. Foi Mark Twain que disse que a memória dele, contrariamente ao que acontecia com a dos outros, se tornava melhor com o tempo: ao envelhecer ele conseguia se lembrar, com total convicção, até de coisas que nunca haviam acontecido… Isso quer dizer que nossa memória de vez em quando claramente nos engana, e nos engana tão bem que passamos piamente a acreditar que aquilo que ela inventou de fato se passou em nossa vida… Esse é o fenômeno do autoengano. Algumas lembranças nossas são fictícias, ou falsídicas, forjadas por nossa memória, mas esta faz uma falsificação tão bem feita que não somos mais capazes de reconhecê-la como tal, de diferencia-la de nossas lembranças genuínas ou verídicas…

No caso de lembranças reprimidas, distorcidas ou falsificadas, só uma boa terapia é capaz desenterrar as lembranças reprimidas, desentortar as distorcidas e revelar que as falsificadas não passam de fabricações – e nem a terapia, por melhor que seja, é capaz de fazer isso o tempo todo, na ausência de documentos ou marcos externos que possam ser usados para provar que determinados episódios que nossa memória dá por não acontecidos, ou por exatos, ou por acontecidos, foram, na realidade, reprimidos, distorcidos ou inventados (ou fabricados).

Aquilo que se passa com os indivíduos, no tocante à sua vida, à sua história, à sua memória e à sua identidade, também se dá, mutatis mutandis (isto é, fazendo-se os devidos ajustes), com instituições — como, por exemplo, o Cristianismo [3]. Por ser uma religião eminentemente histórica, o Cristianismo está sujeito aos percalços que afligem a reconstrução de sua evolução. Não há como evitar esse fato. O próprio relato dos fatos da vida de Jesus nos quatro evangelhos, redigidos, provavelmente, de trinta a setenta anos depois de terem acontecido, sofre essas vicissitudes. Há eventos que um registra e os outros não, há eventos que dois registram, mas os outros dois omitem (como, por exemplo, os relativos ao nascimento de Jesus), há eventos que três registram, mas o quarto ignora, há eventos que todos registram, mas com detalhes diferentes e, por vezes, aparentemente incompatíveis… Muitas diferenças e até mesmo divergências acerca dos poucos anos (cerca de trinta a trinta e cinco anos) que uma pessoa, Jesus, viveu, num lugar só, razoavelmente restrito, do mundo. É possível imaginar quão mais complicada será a história de centenas, milhares, milhões, bilhões de pessoas ao longo de dois mil anos ao longo do toda a superfície da Terra.

O Cristianismo é, hoje, em pleno século 21, uma instituição enorme e extremamente complexa.

Em termos de tamanho, quase um terço da população da Terra se diz cristã [4]. O Judaísmo, do qual o Cristianismo se originou, representa apenas 0,2% da população mundial. (A grande ameaça ao Cristianismo oriunda de outras religiões é o Islamismo, hoje com cerca de 22% da população mundial – mas crescendo em ritmo mais rápido do que o do Cristianismo. Mas, segundo alguns autores, entre os quais me incluo, a maior ameaça, a médio e longo prazo, a menos que algo imprevisto aconteça, não vem de outras religiões, mas, sim, do naturalismo racionalista e secularista, que já alcança cerca de 15% das pessoas do mundo).

Em termos de complexidade, o Cristianismo tem, hoje, pelo menos três ramos principais: o chamado Grego-Ortodoxo, predominantemente Oriental [5], o chamado Latino-Católico, predominantemente Ocidental, e o Protestante-Evangélico, ramo mais moderno, inicialmente Ocidental, posto que nasceu na Europa, mas, hoje, talvez, o ramo mais Global, posto que cresce mais nos países do chamado Terceiro Mundo [6].

Talvez o Cristianismo tout court (sem distinção de ramos), tenha uma identidade básica que o diferencie de outras religiões: Judaísmo, Islamismo, etc. Talvez – mas não é tão fácil identifica-la. Possivelmente essa identidade básica tenha que ver de alguma forma com a pessoa de Jesus, chamado o Cristo (Ungido). Afinal, a religião cristã deriva o seu nome desse epíteto dado a Jesus (figura mais importante para alguns cristãos do que a própria figura do Deus Eterno, o criador do Céu e da Terra). Mas há muita divergência acerca do que, na pessoa de Jesus, seria responsável pela identidade cristã.

Para os primeiros cristãos, aqueles oriundos do Judaísmo, Jesus era o Messias prometido no Velho Testamento. Os escritores dos Evangelhos às vezes chamam Jesus de Rabino (ou Mestre), outras vezes de Profeta, outras vezes de Filho do Homem, outras vezes de Filho de Deus. Para os cristãos não judeus, mais chegados à filosofia grega, Jesus foi chamado de Verbo ou Palavra (Logos). Muitos cristãos do período apostólico e pós-apostólico reconheceram em Jesus um homem, ou um ser, superior (acima dos demais homens ou dos homens, em geral), mas abaixo de Deus. E, finalmente, os cristãos que vieram a ser chamados de ortodoxos (em um sentido genérico, que não tem nada que ver que a expressão Grego-Ortodoxo que qualifica o ramo mais Oriental do Cristianismo) vieram a considerar Jesus como, ao mesmo tempo, plenamente Homem e plenamente Deus, duas naturezas, uma humana e a outra divina, em uma só pessoa, única e indivisível, mas sem que as naturezas se misturassem ou confundissem. Ao definir Jesus como plenamente Deus, no Concílio de Niceia, em 325 [7], os cristãos ortodoxos solucionaram um problema (o da natureza de Jesus) mas criaram outro: Como poderia Jesus ser considerado Deus, da mesma forma que o Deus Eterno, criador do Céu e da Terra, sem que o tradicional monoteísmo esposado pelos cristãos, herdado dos Judeus, fosse colocado em risco? E o Espírito Santo, também não é Deus? Como caracterizar um Deus Triúno, sem cair no Triteísmo, ou, no mínimo, num Deus Triádico? A questão foi resolvida a contento da maioria (mas sem consenso) no Concílio de Calcedônia, em 451 (o quarto Concílio Ecumênico). No entanto, a questão continuou a gerar problemas. Na época da Reforma, em Genebra, Michel Serveto foi condenado à morte pelos seguidores de Calvino por rejeitar a divindade de Jesus e a Trindade. Em pleno século 19 surgiu uma denominação protestante na Inglaterra e nos Estados Unidos que se denominou Unitária – que basicamente concorda com Serveto: Deus é um só, não Três-em-Um. Muitos dos teólogos e cristãos liberais dos séculos 19, 20 e 21 ficaram mais próximos do Unitarismo do que da Ortodoxia, embora reconhecessem na pessoa de Jesus o maior Mestre que a humanidade já teve, em especial na área moral.

Note-se que o Islamismo, embora enfrente outros problemas, não enfrenta problemas desse tipo. Seu fundador não é visto pelos fieis ou pelos teólogos como Deus – ele é um Profeta: Só Alah é Deus – Maomé é o seu profeta. Problema resolvido. Para o Cristianismo, porém, a identidade básica do movimento parece estar ligada às inúmeras tentativas preservadas na memória da igreja, e devidamente registradas em sua história, de responder à questão que, segundo os evangelistas, foi colocada pelo próprio Jesus aos seus discípulos: “Quem dizem os homens que sou eu?” (Marcos 8:27; Almeida RA [8]). Os discípulos responderam: João Batista, Elias, algum dos profetas (Marcos 8:28). Essa resposta forçou Jesus a ser mais incisivo: “Mas vós, quem dizeis que eu sou?” (Marcos, 8:29). Só então Pedro tomou a iniciativa e disse: “Tu és o Cristo” (Marcos 8:29) ou “O senhor é o Messias!” (NTLH [9]). Mas a resposta de Pedro foi tipicamente judaica: Jesus é o Ungido, o Messias… Ele não disse que Jesus era Deus, nem mesmo o Filho de Deus – pelo menos no relato do Evangelho de Marcos. No relato de Mateus (que acrescenta também a informação de que alguns achavam que Jesus era Jeremias), a chamada “confissão de Pedro” é: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mateus 16:16, Almeida, RA) ou “O senhor é o Messias, o Filho do Deus vivo” (NTLH). Lucas, por sua vez, relata que Pedro disse “Tu és o Cristo de Deus” (Lucas, 9:20) ou “o Messias que Deus enviou” (NTLH). Mas, na sequência (verso 22), Lucas faz Jesus se referir a si mesmo como “Filho do Homem”. Em Mateus (verso 20) Jesus, que havia sido chamado de “o Filho do Deus vivo” por Pedro, adverte os discípulos a não dizerem a ninguém que ele era… “o Cristo” – ou “o Messias” (NTLH) – nada dizendo sobre ele ser  “o Filho do Deus vivo”…

A primeira impressão que esses relatos dão é de que nem os próprios discípulos, enquanto viviam com Jesus, nem os evangelistas, quando vieram a escrever seus relatos, tinham muita certeza acerca da natureza de Jesus.

Se esta análise está minimamente correta, a diversidade de pontos de vistas doutrinários (bem como éticos e eclesiásticos) parece ter sempre caracterizado o Cristianismo, até mesmo no Período Apostólico (o primeiro século da nossa era) – apesar de sempre combatida pelos que temporariamente detinham o poder dentro da igreja, que desejavam impor uma visão única, normativa para todos. Foi nessa dialética entre diversidade e unidade, entre o que veio a ser condenado como heresia (doutrina errada, pensamento desviante) e o que veio a ser afirmado como ortodoxia (doutrina certa, pensamento correto), que o Cristianismo floresceu, embora com muitas dificuldades para manter sua integridade e unidade e evitar cismas e divisões…

E não nos esqueçamos de que a “História Oficial” de uma instituição ou movimento é, via de regra, contada pelos vencedores, por aqueles cujas opiniões foram referendadas como ortodoxas…

O Cristianismo foi único, católico, universal, até certo ponto, durante cerca de mil anos.

Em 1054 veio a primeira grande divisão, entre o Cristianismo Grego-Oriental (chamado de Ortodoxo), com sede (naquela ocasião) em Constantinopla, e o Cristianismo Latino-Ocidental (chamado de Católico), com sede (naquela ocasião e sempre) em Roma.

Menos de 500 anos depois, entre os anos de 1517 e 1521, outra grande divisão, agora dentro do Cristianismo Ocidental, entre os Católicos, propriamente ditos, e os que vieram a ser conhecidos como Protestantes. Neste ano de 2017 fará 500 anos que essa divisão começou. Em cerca de quatro anos ela estava basicamente decidida, mas levou quase 150 anos, e muitas guerras e mortes, para se consumar e consolidar (o que se deu em 1648, com a Paz de Westfália, que concluiu a Guerra dos Trinta Anos na Europa Central). A essas alturas o Protestantismo já havia se esparramado para as Ilhas Britânicas e até mesmo para a América.

A partir desse ponto, além de uma identidade básica, a cristã, há que se pensar em pelo menos três identidades derivadas, a identidade grego-ortodoxa da Igreja Oriental, a identidade latino-católica de parte da Igreja Ocidental, e a identidade protestante, do grupo dissidente da Igreja Ocidental – que, diferentemente da Igreja Latina Católica, que falava uma língua só, o Latim, já nasceu falando muitas línguas: Alemão, Francês, Inglês… [10]

A Igreja Oriental está ligada a um Patriarca, chefe supremo de uma hierarquia que lhe dá uma certa identidade característica. A Igreja Ocidental Católica está ligada a um Papa, chefe supremo de uma hierarquia que lhe dá uma certa identidade característica.

E as Igrejas Protestantes? O que as caracteriza? Elas não têm um chefe supremo nem mesmo uma hierarquia única. Algumas até mesmo tentam ser anti-hierárquicas. Muito cedo elas se dividiram em vários sub-ramos: Luteranos, Calvinistas, Anglicanos, Radicais… (Mais tarde, também Batistas, Metodistas, Pentecostais, etc.) Na verdade, as Igrejas Protestantes já nasceram assim, divididas. E logo vieram a se subdividir em vários “sub-sub-ramos”… Será que a identidade do Protestantismo está no reconhecimento do direito, pleiteado por Lutero, de dizer: “Aqui estou, aqui fico, não posso agir doutra forma! Que Deus me ajude!” – e deixar que a unidade se quebre mais uma vez?

Segundo a edição de 2001 da World Christian Encyclopedia existiam 33.830 denominações cristãs por volta do ano 2000. (Esse número conta como diferentes as denominações nacionais, ainda que afiliadas a uma denominação estrangeira). Esse número teria chegado perto de 43.000 em 2015 e provavelmente chegará próximo de 55,000 em 2025…  Dessas, a maioria absoluta é de denominações que se consideram de alguma forma protestantes.

O que lhes dá a todas essas denominações que se consideram protestantes uma identidade comum – se é que elas têm uma identidade comum?

Este é um grande desafio.

A gente estuda a História da Igreja para poder encontrar uma resposta a essa questão – e a muitas outras, algumas das quais se assemelham a essas. Os Mórmons são Cristãos? São Protestantes? E os Testemunhas de Jeová? E os Adventistas do Sétimo Dia? E a Ciência Cristã? E o Espiritismo? E a Igreja da Unificação do Rev. Moon? E a Igreja Unitária? Questão ainda mais complicada: Quem decide essas coisas?

Mas a gente estuda a História da Igreja não só para resolver essas questões parcialmente acadêmicas, mas principalmente para entender por que a gente é Cristão, Protestante, Presbiteriano, e Independente (ou o equivalente) e não alguma outra coisa, como (por exemplo) cético, agnóstico ou ateu, como o são 15% dos habitantes da Terra, hoje. Alguns, ao se aprofundar nesse estudo, provavelmente vão concluir que não pensam de forma tão conforme ao que se entende por Cristão, por Protestante, por Presbiteriano e por Independente dentro da tradição. Há muita gente dentro das igrejas ditas calvinistas (geralmente Presbiterianas) cuja teologia é mais arminiana (Metodista) do que propriamente Presbiteriana, e que franzem o cenho com horror quando descobrem algumas das coisas que ensina a Confissão de Fé de Westminster (Confissão de Fé mais importante do Presbiterianismo tradicional, redigida na Inglaterra entre 1643 e 1649)… Dentro de nossas igrejas Protestantes hoje há liberais, conservadores e moderados, talvez com radicais nos dois extremos, secularistas e fundamentalistas… Muitos não são ortodoxos no sentido previsto pelos Concílios Ecumênicos de Niceia (325) e Calcedônia (451), e, portanto, vivêssemos nós em épocas menos tolerantes, já teriam sido condenados como hereges…

Para entender isso, a gente precisa saber o que caracteriza a especificidade de cada um desses “centros de identidade”. Por que ser Cristão? Ou por que ser, além de Cristão, Protestante? Por que ser, além de Protestante, Presbiteriano? Por que ser, além de Presbiteriano, Independente? Ou, além de Presbiteriano, Renovado? Ou além de Presbiteriano, Conservador? Ou além de Presbiteriano, Fundamentalista?

Um corolário desse estudo, espera-se, é que a gente seja capaz de dar uma resposta plausível acerca de quem é irmão, quem é primo, quem é cunhado, quem é parente distante, e quem nem mais parente é, em termos de afiliação religiosa… [11]

O Cristianismo nasceu como uma seita judaica. Os primeiros cristãos eram judeus que não queriam se separar ou desligar de sua fé histórica. Eles tinham suas Escrituras, que definiam sua tradição, preservavam sua memória, os ajudavam a definir sua identidade, e lhes davam esperança…

Por volta do ano 49/50, cerca de vinte anos depois da morte de Jesus, um cristão, em particular, judeu como os outros, mas também “Cidadão Romano”, Saulo de Tarso, renomeado Paulo quando de sua conversão ao Cristianismo, passou oficialmente a defender uma nova visão do Cristianismo. Segundo essa visão, o Cristianismo não seria mais uma seita judaica, mas, sim, uma religião inclusiva, universal, que, muito embora tivesse raízes históricas muito bem fincadas na terra dos judeus (que logo seriam expulsos de sua terra milenar, entre 66 e 70 dC), não faria distinção entre judeus e gentios, entre hebreus, gregos e romanos (ou entre senhor e escravo e, pasmem, entre homem e mulher… [12]). Sua esperança era de que o mandado de Jesus, de ir por todo o mundo e pregar o Evangelho a toda criatura, lhe servisse de autorização para reinterpretar a mensagem de Jesus, pelo menos como ele a entendia, em termos que gregos e romanos, e quaisquer outros, pudessem entender e aceitar. Paulo ficou conhecido como “O Apóstolo dos Gentios” (Ou “O Apóstolo da Incircuncisão”, para distingui-lo de Pedro, que seria o “Apóstolo da Circuncisão”). Paulo não abandonou a tradição, não considerou revogada a Lei Judaica, não renegou a memória – mas reinterpretou sua mensagem, provavelmente já em entregue aos seus ouvintes e leitores em Grego, não em Hebraico ou Aramaico, em termos de sua esperança, de modo a acomoda-la a outras línguas, a outros mundos, e a outros modos de ver o mundo e, no mundo, a condição humana. Paulo teria vivido, dialeticamente, entre sua memória e sua esperança…

Há historiadores que consideram Paulo o verdadeiro fundador do Cristianismo e admiram a genialidade com que ele traduziu temas da Bíblia dos judeus e da mensagem de Jesus para um universo conceitual que fascinou pessoas que detestavam o paroquialismo étnico dos descendentes de Abrahão [13]. Esses historiadores em geral defendem a necessidade de sempre tentar acomodar a tradição à contemporaneidade e não temem que, ao abraçar com boa vontade a contemporaneidade, se possa vir a perder os vínculos com a tradição e a memória que lhes davam identidade…

Outros historiadores acham que Paulo foi longe demais em sua tentativa de acomodar a mensagem de Jesus ao pensamento greco-romano (mais grego do que romano), e concluem que ele acabou por complicar e distorcer a mensagem original de Jesus, muito mais judaica do que grega, e extremamente simples, de que Deus é nosso pai e todos nós, cristãos, somos irmanados através de nossa aceitação dessa mensagem, centrada na lei áurea, assim implantando o Reino de Deus aqui na Terra. Esses historiadores em geral defendem um regresso aos primórdios, um retorno à fé uma vez dada aos santos, negando validade até mesmo à síntese paulina, quanto mais às posteriores. Eles em geral não temem – pelo contrário, veem o fato com bons olhos – que ao voltar às tradições originais, se possa perder contato com a contemporaneidade… [14]

Entre esses sistemas somos chamados a viver e a nos reconhecer como cristãos, cada qual da forma mais honesta e transparente que for capaz.

 Salto, SP, 21 de Novembro de 2016

Eduardo Chaves
Professor de História da Igreja / FATIPI

3. Notas

[1] Especificamente esse tema é objeto do livro de Rodney Stark, The Rise of Christianity: How the Obscure, Marginal Jesus Movement Became the Dominant Religious Force in the Western World in a Few Centuries (HarperCollins, New York, 1996). Na verdade, o Cristianismo se transformou na principal força cultural dominante no mundo ocidental – não apenas na área religiosa: dominou a filosofia, a educação, a arquitetura, a música, as artes em geral, para não falar na política e na economia. Falando especificamente da educação, na Idade Média as universidades foram criadas pela civilização cristã; no início da Idade Moderna, a Reforma Protestante foi a força motora da escola básica universal, destinada a todos – e, nos contextos em que a igreja protestante era estatal, como na Alemanha, custeada pelo Estado. Muito antes do movimento do século 19 por uma escola universal, única, gratuita e estatal, a Reforma Protestante do século 16 já a patrocinou. A única bandeira que a Reforma Protestante não defendeu foi a da escola laica.

[2] Paul Johnson, A History of Christianity (Simon & Schuster, New York, 1976). Tradução brasileira sob o título História do Cristianismo (Imago Editora, Rio de Janeiro,  2001), pp.7-8 (Prólogo). [Ênfase acrescentada.]

[3] John Dominic Crossan, em seu livro The Birth of Christianity: Discovering What Happened in the Years Immediately After the Execution of Jesus (Harper Collins, New York, 1998), faz uma aplicação extremamente criativa e instigante (embora nem sempre reconfortante para cristãos mais conservadores) desses achados da pesquisa à questão do surgimento do Cristianismo, lidando com a tradição oral e as fontes escritas que foram incorporadas aos Evangelhos e ao livro de Atos. Vide especialmente as três primeiras partes de seu livro (que cobrem nove capítulos), que têm títulos como “Continuação e Reconstrução” (pp.1-46), “Memória e Oralidade” (pp.47-89) e “Evangelhos e Fontes” (pp.91-135). Este livro foi traduzido para o Português com o título O Nascimento do Cristianismo: O que Aconteceu nos Anos que se Seguiram à Execução de Jesus (Editora Paulinas, São Paulo, 2004) – mas aparentemente está esgotado. Há um excelente artigo-resenha sobre o livro, por Pedro Lima Vasconcellos, Professor do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP, em http://ciberteologia.paulinas.org.br/ciberteologia/wp-content/uploads/2009/05/05jun-res-nascimento-cristianismo.pdf. A resenha foi publicada originalmente na Revista de Cultura Teológica – v. 14 – n. 56 – julho/setembro de 2006, pp.169-182. Há um fac simile do artigo, em formato .pdf, em http://revistas.pucsp.br/index.php/culturateo/article/view/15086/11267.

[4] Segundo dados da Wikipedia, no verbete “List of Religious Populations”, estima-se que em 2012 havia nada menos do que 2,2 bilhões de cristãos no mundo (cerca de 31,2% de uma população mundial estimada em cerca de 6,9 bilhões). Compare-se https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_religious_populations.

[5] Não estou incluindo aqui o quarto ramo do Cristianismo que Diarmaid MacCulloch chama de Siríaco em seu monumental livro (monumental em termos de conteúdo e de tamanho – 1184 páginas!) Christianity: The First Three Thousand Years (Penguin Books, London & New York, 2009, 2010), pp.3, 202-210 et alia. MacCulloch considera que o Cristianismo Grego-Oriental, que é chamado de Grego mais por causa da língua usada do que pelo fato de ter vínculos com a Grécia, está estreitamente vinculado ao Império Romano Oriental. Este, formalizado (pela última vez) com a divisão do Império Romano em dois, em 395, teve, até 1453, sede em Constantinopla (hoje Istambul). Depois, com a ocupação islâmica dessa cidade, através do Império Otomano (que existia desde 1299), se moveu Norte, na direção da Rússia (que geograficamente é o seu maior foco, hoje em dia, apesar de ter voltado a ter uma raiz importante em Constantinopla/Istambul, depois do fim do Império Otomano em 1922 e o início da Turquia Moderna a partir de 1923, com Mustafá Kemal, conhecido como Atatürk, na sequência da Primeira Guerra Mundial e vários outros conflitos). Segundo o ponto de vista de MacCulloch, o Cristianismo Grego-Oriental não deve ser confundido com o Cristianismo nascido, como seita judaica, em Jerusalém, e que falava Aramaico, e não Grego, mas que, com a tomada de Jerusalém na guerra de 66-74 entre os Judeus e os Romanos, se locomoveu para a Síria e arredores, chegando até o Extremo Oriente, e passou a falar Siríaco e, depois, também Cóptico, quando chegou ao Egito, no Norte da África. Esse ramo do Cristianismo, que sempre existiu fora do Império Romano, ou nos seus limites orientais e meridionais mais extremos, acabou por ser basicamente ignorado pelo Cristianismo Latino-Ocidental (Romano) e mesmo pelo Cristianismo Grego-Oriental (Ortodoxo), mas não deixa de ter importância por causa disso. Poderíamos denomina-lo Cristianismo Siríaco-Oriental. MacCulloch acredita que esse ramo do Cristianismo poderia ter se tornado o ramo mais importante do Cristianismo, tanto do ponto de vista teológico como político, tendo em Bagdá o seu centro vital (!), não fora o surgimento do Islamismo no século oitavo (p.3). Fica feita a ressalva.

[6] Tanto isso é assim que as igrejas Neo-Protestantes (ou Neo-Evangélicas ou Neo-Pentescostais) originadas no Brasil no último quarto do século 20 usam (e talvez até abusem) de adjetivos que indicam seu caráter global: Igreja Universal do Reino de Deus (fundada em 1977), Igreja Internacional da Graça de Deus (fundada em 1980), e Igreja Mundial do Poder de Deus (fundada em 1998), etc.

[7] Neste texto, quando uma data não vem seguida de nenhuma especificação, ela se refere ao período posterior ao nascimento de Jesus (“dC” ou “aD” – “depois de Cristo” ou “Anno Domini”). Só se colocará uma especificação em datas anteriores ao nascimento de Jesus (“aC” – “antes de Cristo”) – ou, então, quando puder haver dúvida. Esse procedimento desatravanca um pouco o texto.

[8] Também para não atravancar o texto, daqui para a frente todas as citações da Bíblia, a menos que haja observação em contrário, são feitas segundo a tradução conhecida como “Almeida, Revista e Atualizada”, incorporada na Bíblia de Estudo de Genebra publicada como “Segunda Edição Revisada e Ampliada” (Sociedade Bíblica do Brasil, Barueri, 2009).

[9] NTLH = Nova Tradução na Linguagem de Hoje (Sociedade Bíblica do Brasil, Barueri, 2000, 2005).

[10] Mais uma vez registro que estou deixando de fora o Cristianismo Siríaco tão bem defendido por MacCulloch; vide Nota 5.

[11] Mark Noll, historiador protestante americano (de convicção evangélica), em seu livro Turning Points: Decisive Moments in the History of Christianity (Baker Books, Grand Rapids, 1997), tradução para o Português sob o título Momentos Decisivos na História do Cristianismo (Editora Cultura Cristã, São Paulo, 2000), pp.15-21 da tradução brasileira, acrescenta as seguintes sete razões para o estudo da História do Cristianismo (ou da Igreja Cristã): esse estudo (a) “fornece demonstrações repetidas e concretas acerca do caráter irredutivelmente histórico da fé cristã”; (b) “oferece (…) uma perspectiva acerca da interpretação das Escrituras”; (c) “é útil como um laboratório para o exame das interações cristãs com a cultura circundante”; (d) “proclama em voz alta (…) que Deus sustenta a igreja a despeito de esforços frequentes da mesma em trair o seu Salvador e a sua própria vocação superior”; (e) “pode ser útil para moldar atitudes cristãs apropriadas”; (f) “deve aumentar a nossa humildade sobre quem somos e aquilo em que cremos”; (g) “ainda mais do que humildade (…) também pode gerar profunda gratidão”.

[12] A razão para o “pasmem” está no fato de que o Cristianismo Primitivo, em geral, e Paulo, em particular, é por muitos considerado uma religião patriarcal, machista e, quem sabe, até misógino – apesar de haver quem defenda a tese de que tanto Jesus como Paulo defendiam algo parecido com a “igualdade de gênero”, hoje popular. É verdade que Paulo afirma, em Gálatas 3:26-28, o seguinte: “Pois todos vós sois filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus; porque todos quantos fostes batizados em Cristo de Cristo vos revestistes. Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus.” (Ênfases acrescentadas). No entanto, Paulo foi o primeiro escritor cristão a dar diretivas explícitas sobre o papel da mulher na Igreja Cristã – e suas recomendações estão longe de ser igualitárias, quanto mais feministas. Vide 1 Coríntios 14:33-35: “Como em todas as igrejas dos santos, conservem-se as mulheres caladas nas igrejas, porque não lhes é permitido falar; mas estejam submissas, como também a lei o determina. Se, porém, querem aprender alguma coisa, interroguem, em casa, a seu próprio marido; porque para a mulher é vergonhoso falar na igreja.” (Ênfases acrescentadas). Alguns defensores de Paulo, em especial mulheres, acham essa passagem tão chocante, e em aparente contradição com outras manifestações escritas do apóstolo, e com sua atitude para com mulheres na Igreja, citadas pessoalmente em outras passagens, que não hesitam em afirmar que a passagem citada atrás é “uma interpolação pós-paulina”, isto é “ensino de uma época posterior que eventualmente alguém inseriu no texto da carta paulina”. Comparem-se as referências a Barbara Leonhard na Wikipedia, no verbete “Paul the Apostle and Women”, https://en.wikipedia.org/wiki/Paul_the_Apostle_and_women. Barbara Leonhard é uma freira franciscana, autora de um artigo com o título “Saint Paul and Women: A Mixed Record”, em Franciscan Media, acessível em https://www.franciscanmedia.org/saint-paul-and-women-a-mixed-record/. Comparem-se também as referências, no mesmo artigo da Wikipedia, a Jerome Murphy O’Connor, este um famoso sacerdote dominicano, professor especializado em Paulo na École Biblique de Jerusalém, em seu New Jerome Biblical Commentary (Prentice-Hall, Englewood Cliffs, 1990), pp.811-812, apud o artigo da Wikipedia. Entre as manifestações escritas de Paulo que estariam em contradição com a passagem de 1 Coríntios 14:33-35 é mencionada a passagem de 1 Coríntios 11:5, em que Paulo deixa claro que as mulheres podem orar e profetizar na Igreja (mas devem fazê-lo com a cabeça coberta por véu). No entanto, a própria sequência dessa passagem é passível de interpretações que negam a unidade, em Cristo, entre o homem e a mulher. Eis a passagem completa de 1 Coríntios 11:5-10: “Toda mulher, porém, que ora ou profetiza com a cabeça sem véu desonra a sua própria cabeça, porque é como se a tivesse rapada. Portanto, se a mulher não usa véu, nesse caso, que rape o cabelo. Mas, se lhe é vergonhoso o tosquiar-se ou rapar-se, cumpre-lhe usar o véu. Porque na verdade o homem não deve cobrir a cabeça, por ser ele a imagem e a glória de Deus, mas a mulher é glória do homem. Porque o homem não foi feito da mulher, e sim, a mulher do homem. Porque também o homem não foi criado por causa da mulher, e sim a mulher, por causa do homem. Portanto, deve a mulher, por causa dos anjos, trazer véu na cabeça, como sinal de autoridade”. (Ênfase acrescentada). Os dois versículos seguintes, 11-12, estes sim, parecem ser interpolados, porque quebram o fluxo do raciocínio, como indica o “todavia”. Eis o que dizem: “No Senhor, todavia, nem a mulher é independente do homem, nem o homem, independente da mulher. Porque como provém a mulher do homem, assim também o homem é nascido da mulher; e tudo vem de Deus” (1 Coríntios 11:11-12; ênfase acrescentada). O trecho negritado parece denotar certa impaciência e o desejo de encerrar a discussão… Como as Epístolas aos Efésios e aos Colossenses, bem como as Epístolas Pastorais, não estão entre as cartas quase unanimemente consideradas paulinas, deixo de comentar as passagens Efésios 5:22-30 e Colossenses 3:18-19, em que o autor propõe que as mulheres sejam submissas aos seus maridos, e 1 Timóteo 2:9-15, em que se enfatiza claramente a desigualdade entre homens e mulheres na igreja e fora dela, invocando até mesmo o (suposto) fato de que o homem foi criado antes da mulher. Uma excelente discussão do tema pode ser encontrada em Bart D. Ehrman, The New Testament: A Historical Introduction to the Early Christian Writings (Oxford University Press, New York, 3rd edition, 2004), Chapter 24, “From Paul’s Female Colleagues to the Pastor’s Intimidated Women: The Oppression of Women in Early Christianity”, pp.395-407.

[13] Um outro Material Complementar, com o título “Uma Tese Liberal sobre o Período Apostólico” discute essa tese em um pouco mais de detalhe, no link indicado.

[14] Essa tradição vê Jesus como interessado basicamente em questões ético-políticas (como a forma de viver em sociedade e buscar a libertação dos judeus de mais um cativeiro) e não em questões mítico-escatológicas acerca do fim iminente do mundo. Em outras palavras: essa tradição está mais do lado da interpretação de Jesus feita pela Teologia Liberal e, mais recentemente, por John Dominic Crossan, em seus vários livros acerca de Jesus, em especial The Historical Jesus: The Life of a Mediterranean Jewish Peasant (Harper, New York, 1991), Jesus: A Revolutionary Biography (Harper, New York, 1994), e The Birth of Christianity, op.cit., do que do lado da interpretação de Jesus feita por Johannes Weiss e Albert Schweitzer: o primeiro (Johannes Weiss), em seus livros Earliest Christianity: A History of the Period AD 30-150, 2 Volumes (Harper, New York, 1937 – tradução do Alemão Das Urchristentum (Vandenhoeck & Rupprecht, Göttingen, 1917) e Jesus’ Proclamation of the Kingdom of God (Fortress, Philadelphia, 1971), tradução do Alemão, Die Predigt Jesu vom Reiche Gottes (Vandenhoeck & Rupprecht, Göttingen, 1892); o segundo (Albert Schweitzer), em seus livros The Quest of the Historical Jesus: A Critical Study of its Progress from Reimarus to Wrede (A. & C. Black, London, 1911), tradução do Alemão Von Reimarus zu Wrede: Eine Geschichte der Leben-Jesu-Forschung (J. C. B. Mohr / Paul Siebeck, Tübingen, 1906)  e The Mystery of the Kingdom of God: The Secret of Jesus’s Messiahship and Passion (Dodd, Mead & Co, New York, 1914), tradução do Alemão Das Messianitäts und Leidensgeheimnis. Eine Skizze des Lebens Jesu (J. C. B. Mohr / Paul Siebeck, Tübingen, 1901, 1955).

Eduardo Chaves
Ph.D., University of Pittsburgh (1972)
Professor de História da Igreja
Faculdade de Teologia de São Paulo da
Igreja Presbiteriana Independente do Brasil
(FATIPI)

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