Três Milênios de Cristianismo: Comentários sobre D. MacCulloch

Aqueles que me conhecem mais de perto e/ou têm acompanhado os últimos três anos de minha atividade intelectual aqui no Facebook sabem duas coisas:

  • Meu projeto de vida, que me levou a ter a formação acadêmica que tive, era ser historiador do pensamento cristão e da igreja que esse pensamento construiu;
  • Só vim poder a colocar em prática aquilo para o que me preparei a partir do meio do ano de 2014 – três anos atrás – quando fui convidado a assumir a matéria História da Igreja (que inclui História do Pensamento Cristão) na Faculdade de Teologia de São Paulo da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (FATIPI).

De Agosto de 1972, quando concluí meu Doutorado em Filosofia nos Estados Unidos, até Dezembro de 2006, quando me aposentei da UNICAMP, atuei, academicamente, na área de Filosofia (Filosofia da Educação, Filosofia Política, Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência, História da Filosofia).

Durante esse tempo todo, continuei a ler sobre a área na qual havia inicialmente planejado trabalhar, mas vivi afastado da igreja e dos embates teológicos da atualidade, dedicando mais atenção à análise filosófica da educação e da política, bem como à discussão de questões epistemológicas como, por exemplo, o ceticismo e o relativismo.

Não tenho dúvida em dizer, hoje, que essa experiência acadêmica de 35 anos e o distanciamento que tive, durante esse tempo, do dia-a-dia da vida na igreja e dos grandes debates teológicos, me foram extremamente valiosos na minha abordagem da matéria que, faz três anos, me foi dado retomar, para minha alegria e satisfação. Essa experiência e esse distanciamento me permitiram abordar o estudo da História da Igreja e do Pensamento Cristão de uma forma mais objetiva, isenta e desapaixonada.

Das dezenas e dezenas de autores que começaram a frequentar minha mesa de trabalho e minha cabeceira desde o primeiro semestre de 2014, um deles se destacou: Diarmaid MacCulloch. Um autor prolixo (como também eu sou), mas que não está envolvido,”t com um “esprit partisan”, no assunto de seu métier. Refiro-me, principalmente, a dois de seus livros: Christianity: The First Three Thousand Years e The Reformation. Juntos, esses dois livros perfazem  2.016 páginas (1.184 e 832, respectivamente). Eu falei que ele era prolixo – mas sua leitura é deliciosa.

Só uma palavrinha para explicar os “três milênios” do Cristianismo – que, na contagem do resto do mundo, só tem dois mil anos… É que, para MacCulloch, o Cristianismo incorporou mais ou menos mil anos do Pensamento Judaico e do Pensamento Grego, antes de se tornar uma religião autônoma, independente do Judaísmo.

Aqui neste artigo quero discutir, à minha moda, uma série de questões que MacCulloch levanta no último capítulo do livro sobre a Reforma do Século 16 (que inclui, de certo modo, os Séculos 15 e 17, pelo menos em parte – talvez de 1450 a 1650). Quando digo que vou discutir essas questões “à minha moda”, quero usar uma metáfora que o Rubem Alves um dia usou: vou ingerir as ideias postas em discussão por MacCulloch e deixar que elas sejam digeridas pelo meu sistema, incorporando-se ao meu DNA, assim passando a ser minhas… Não vou explicitar, em cada caso, o que é MacCulloch e o que sou eu.

Nesse último capítulo de The Reformation (o capítulo 17), intitulado “Outcomes” (Resultados), MacCulloch aponta alguns grandes desafios a confrontar as tradições católica e protestante no Século 21. Vou só mencionar os desafios à tradição católica para me concentrar nos desafios à tradição protestante. Mas nos dois casos os desafios têm que ver de alguma forma com a questão da sexualidade – uma questão mal resolvida no Cristianismo.

No caso da tradição católica, os desafios são as seguintes questões: controle da natalidade, celibato clerical, homossexualidade, e pedofilia.

No caso da tradição protestante, feminismo (lato sensu), divórcio e novo casamento, ideologia do gênero, homossexualidade, e família.

Como disse, vou discutir apenas este segundo conjunto de questões (que, pelo menos no caso da homossexualidade, se sobrepõe às questões que desafiam a tradição católica).

Vou procurar relacionar essas questões com o famoso Sola Scriptura do Protestantismo: a tese de que a única fonte de autoridade para o cristão protestante é a Bíblia, em especial o Novo Testamento.

No caso do feminismo, disse que ele será interpretado lato sensu. As mulheres de hoje, diferentemente das mulheres da maior parte dos três mil anos analisados por MacCulloch no outro livro, se acham no direito de participar plena e igualitariamente, da mesma forma que o fazem os homens, com os mesmos direitos e deveres, da vida das instituições com as quais se relacionam, entre as quais destaco a família e a igreja.

No entanto, a Bíblia (o Novo Testamento) diz explicitamente que as mulheres devem ser obedientes e submissas aos seus maridos e, na igreja, devem (além de usar véu) permanecer caladas. A maior parte das mulheres de hoje se recusa a aceitar essas determinações bíblicas. No entanto, se são cristãs conservadoras, acreditam que a Bíblia é a Palavra de Deus, e que ela é inerrante e infalível.

A saída mais frequente para o aparente impasse é dizer que essas determinações são resquícios de uma mentalidade machista do primeiro século de nossa era, mentalidade essa que Paulo (o “autor humano” das determinações) e que, portanto, podem ser desconsideradas, pois a mentalidade hoje é outra

MacCulloch afirma, com todas as letras, e nisto estou 100% de acordo com ele, que essa saída é inadmissível para pessoas que são cristãs conservadoras e acreditam na inspiração divina, verbal e plenária da Bíblia, e, por conseguinte, em sua inerrância e infalibilidade. Diz ele (falando de outro assunto) em The Reformation:

“As duas únicas alternativas são:

(a) aderir aos padrões de comportamento prescritos pela Bíblia [ser obediente e submissa ao marido, ficar calada e usar véu na igreja],

ou, então,

(b) reconhecer que, em relação a essas questões, e a várias outras, a Bíblia simplesmente está errada” [p.705; ênfase acrescentada].

No caso de divórcio e novo casamento, o mesmo padrão existe, embora não seja tão clara a posição bíblica. Paulo, por exemplo, acha uma vida celibatária é preferível a uma vida na condição de casado, e que, por conseguinte, as pessoas virgens e os viúvos devem aderir a ela. Tanto Paulo como Jesus, porém, parecem admitir o divórcio (como uma concessão à fragilidade da natureza humana) para uma pessoa casada que é vítima de traição. Mas não admitem, com todas as letras, que a pessoa divorciada se case de novo. Mais uma vez, a maioria das pessoas, hoje, mesmo entre os protestantes, admite o divórcio (sem necessidade de indicar as causas tradicionais: adultério, tentativa de homicídio, violência, maus tratos, etc.) por mútuo consentimento, ou mesmo unilateral, quando o amor deixou de existir (ou seja, em face ao “desamor”), ainda que para apenas uma das partes – e defende o direito de que a pessoa divorciada se case de novo (talvez tantas vezes quanto for preciso).

O que fazer aqui? A mesma alternativa se impõe: ou os casados aderem aos padrões de comportamento prescritos pela Bíblia, continuando casados, mesmo que o casamento seja informe e o cônjuge um psicopata, ou reconhecem que a Bíblia está errada (tanto neste caso como na defesa da condição superior do celibato face ao casamento.

No caso da ideologia do gênero, a Bíblia nem discorre sobre o assunto, apenas deixando claro que, quando da criação, a espécie humana foi criada em duas variedades: o sexo masculino e o sexo feminino. A maioria dos protestantes hoje (exceto no caso dos mais liberais) parece concordar com isso – e, portanto, não enfrenta grandes problemas para aderir ao padrão bíblico.

No tocante à questão do homossexualismo, a Bíblia é explicita, tanto no Velho como no Novo Testamento, em condenar o relacionamento sexual e afetivo entre pessoas do mesmo sexo. Novamente, aqui, os cristões aderem a esse ponto de vista ou são obrigados a reconhecer que a Bíblia está errada. Dentro dessa visão, é inadmissível que um cristão aprove o casamento ou a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Mas, se aprovar, precisa repudiar a crença na inspiração divina da Bíblia e em sua inerrância e infalibilidade.

Por fim, a questão da família – na qual entre uma novidade. No Velho Testamento, a poligamia era admissível (na forma de um homem ter várias mulheres [poliginia], mas não na forma de uma mulher ter vários maridos [poliandria]). Mas no Novo Testamento, não. A posição oficial da Igreja Cristã é que a família é constituída por um homem, uma mulher e seus filhos – o homem sendo o chefe da sociedade conjugal. Qualquer coisa diferente disso (como, por exemplo, uma família de homossexuais ou uma família “poliamorosa”, composta de várias mulheres e vários homens) é condenável. Se algum cristão se vê desejoso de defender a legitimidade dessas famílias alternativas hoje muito badaladas, ele é obrigado a admitir que a Bíblia está errada.

É isso. Já discuti a maior parte dessas questões em sala de aula (presencial e virtual) e quase sempre o ambiente esquenta.

Em Salto, 19 de Maio de 2017 (1h da manhã)

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