Ortodoxia e Heresia

Ortodoxia e Heresia

Conteúdo

I. Introdução

II. Ortodoxia e Heresia: Conceituação

  1. Uma Discussão Menos Técnica
  2. Parêntese com um Texto de William Lane Craig
  3. O Sentido Etimológico dos Termos “Heresia” e “Ortodoxia”

III. A Construção da Ortodoxia

  1. Das Heresias à Ortodoxia
  2. Pluralismo e Relativismo de Pontos de Vista — e Tolerância
  3. Ferramentas para a Construção da Ortodoxia Cristã

IV. Ortodoxia e Repressão: O Engaiolamento do Pensamento

  1. Tecnologia e Religião
  2. Teologia e Educação
  3. Protestantismo e Ortodoxia
  4. Ortodoxia e Intolerância
  5. Intolerância e Repressão
  6. Homenagem a Rubem Alves

V. Notas

I. Introdução

Escrevo (na realidade, reescrevo) este artigo em Março de 2017. Há dois anos (no início de 2015) comprei e li um livro (publicado naquele mesmo ano) acerca da História da Igreja na Idade Média que achei muito interessante: Medieval Christianity: A New History, de Kevin Madigan (Yale University Press, 2015). Embora o livro seja, como indica o título, uma abordagem nova à História do Cristianismo na Idade Média, sua primeira parte é dedicada à História do Cristianismo na Antiguidade.

O autor, para justificar a novidade de sua obra (o subtítulo do livro é “Uma Nova História”), tenta provar, em relação ao Cristianismo na Antiguidade, uma tese complexa que vai contra o que normalmente se acredita – e que é uma tese relativamente antiga, mas, aparentemente, meio esquecida.

O que normalmente se acredita é que a maioria dos cristãos nos cinco primeiros séculos da era cristã subscrevia àquilo que hoje se considera ortodoxia em sua doutrina, as diversas heresias aparecendo posteriormente, apenas nas periferias, e sendo rapidamente combatidas e rechaçadas pela maioria ortodoxa.

Contra essa crença convencional Madigan procura provar uma tese complexa (que não é original dele [1], mas que ele defende muito bem):

  • A construção do que hoje chamamos de ortodoxia foi um processo longo, lento, gradual e difícil, concluído apenas por volta dos séculos 5 e 6 (isto é, já, no seu extremo, dentro da Idade Média), e que foi objeto de deliberação intencional e cuidadosa;
  • A maioria dos cristãos durante os primeiros quatro ou cinco séculos subscrevia a pelo menos uma doutrina, geralmente a mais de uma, que veio a ser considerada herética posteriormente;
  • A ortodoxia foi construída, de cima para baixo, à medida em que bispos e a liderança teológica (os pais da igreja que acabaram por não ser considerados heréticos em algum aspecto importante), de início debaixo do braço forte do Imperador Romano, se valeram de quatro instrumentos para forçar os demais cristãos a subscrever ao núcleo de doutrinas considerado ortodoxo por eles:
    • A realização de concílios ecumênicos, para os quais todos os bispos eram convidados;
    • A definição de fórmulas, regras de fé ou credos que “encapsulavam” a doutrina ortodoxa em várias afirmações curtas e precisas;
    • A definição do cânon do Novo Testamento e a declaração de seu fechamento;
    • A sujeição e submissão do pensamento da generalidade dos cristãos aos ditames do clero, em especial do bispo da região;
    • Em resumo: Concílio, Credo, Canon e Clero são os quatro mecanismos (os quatro C’s) para definir aquilo que é considerado ortodoxia no Cristianismo Católico (mais dois C’s aqui…) e para impor essa ortodoxia aos membros da igreja, em especial ao seu clero recalcitrante;
  • No processo, doutrinas que não se adequavam aos credos foram sendo consideradas heréticas e anatematizadas, bispos e teólogos discordantes foram sendo eliminados (por excomunhão, não raro seguida de banimento do território imperial) do rol das autoridades, e os escritos que de alguma forma não se ajustavam totalmente aos credos aprovados ficaram, ou foram postos, fora do cânon.

Interessante, não? A maioria dos cristãos (no centro, e não na periferia) era não-ortodoxa (pelo critério de ortodoxia adotado posteriormente), vale dizer, herege, e a ortodoxia se construiu por um processo gradual mas deliberado de eliminação de pontos de vista e pessoas (aqui a eliminação foi por excomunhão e banimento) rotulando-os de heresias e hereges.

Termino esta Introdução com um comentário pessoal… Tenho dificuldade para acreditar que pequenos pontos de divergência doutrinária tenham servido, ao longo da história da igreja, para inúmeras excomunhões de pessoas, individualmente, ou grupos de pessoas, bem como para cismas e divisões da igreja. Às vezes, do ângulo de sua dedicação à igreja e de sua moralidade, não havia reparo a fazer a essas pessoas, individualmente, ou a esses grupos de pessoas… Mas seus pontos de vista tinham um “cheiro” de heresia (em geral Arianismo ou Pelagianismo [esta, hoje em dia, na forma de Arminianismo])… Nada mais do que isso. Logo, excomunhão neles. Sempre achei isso lastimável. Que, porém, essa atitude ainda perdure no século 21 é ainda mais lamentável. Perdão pelo desabafo. [2]

II. Ortodoxia e Heresia: Conceituação

1. Uma Discussão Menos Técnica

Ortografia é grafia correta. Ortodoxia é opinião correta, ponto de vista correto.

Na História da Igreja Cristã o oposto de um ponto de vista correto é chamado de Heresia. Uma heresia é, portanto, um ponto de vista incorreto. Uma pessoa que adota uma heresia, um ponto de vista incorreto, é chamado de herege.

Na História da Igreja Cristã hereges eram em regra excomungados. A excomunhão é uma ferramenta terrível nas mãos de um bispo, arcebispo, patriarca ou papa. Quando alguém que é membro da igreja é excomungado ele deixa de ser membro da igreja e perde os direitos que tinha como membro, como, por exemplo, o direito de comungar, vale dizer, o direito de ter comunhão com os demais membros, participar da Eucaristia ou da Ceia do Senhor, votar em assembleias, etc. A excomunhão é, por assim dizer, e para fins práticos, a revogação do batismo — a retenção da “carteirinha de membro” do indivíduo na entidade “igreja”.

Para que se conclua que alguém é herege, na igreja, é preciso saber, com bastante clareza e precisão, o que conta como ponto de vista correto — isto é, o que conta como ortodoxia.

Isso nem sempre é fácil.

Os pontos de vista classificáveis como ortodoxia ou heresia são, em regra, pontos de vista acerca de doutrina.

Uma doutrina, na religião ou na teologia, diferentemente de uma teoria, na filosofia ou na ciência, é um conjunto de enunciados acerca de um tema de importância para a religião que é colocado como objeto de fé ou aceitação pelos fiéis daquela religião.

Por exemplo, no caso do Cristianismo, os enunciados

a. “Jesus era filho de Maria”

b. “Jesus era judeu”

não são exatamente doutrinas — são meras afirmações de fatos históricos cuja aceitação ou rejeição depende de evidência que pode ser pesquisada, mesmo que essa pesquisa, vinte séculos depois, não seja exatamente fácil.

Por outro lado, os enunciados

c. “Jesus é filho de Deus”

d. “Jesus é divino”

são doutrinas (ou afirmações doutrinárias).

Por quê? Qual a diferença entre “a” e “b”, de um lado, e “c” e “d”, do outro?

Uma diferença é que qualquer pessoa, cristã ou não, pode aceitar (com base em evidências históricas) a veracidade dos dois primeiros enunciados [“a” e “b”] sem ser, por isso, considerado cristão. Aceitar a veracidade dois enunciados seguintes [“c” e “d”] é, muito provavelmente, equivalente a identificar-se como cristão (pelo menos nas hostes mais ortodoxas e conservadoras do Cristianismo).

Por isso.

Também parece ser uma afirmação doutrinária dizer que

e. “Maria, a mãe de Jesus, o concebeu e deu a luz a ele enquanto ainda era virgem”

f. “Maria, a mãe de Jesus, continuou a ser virgem, mesmo depois de dar a luz a Jesus”

Essa última doutrina (“f”) é chamada de doutrina da “virgindade perpétua de Maria”; a anterior (“e”) é chamada de doutrina do “nascimento virginal de Jesus” — seria mais correto chama-la de doutrina da “concepção virginal de Jesus”.

Disse atrás que decidir que um determinado ponto de vista é ortodoxo ou herético muitas vezes não é fácil.

Nossa evidência para aceitar os enunciados “a” e “b” é o fato de que a Bíblia afirma esses enunciados E (esse “e” é importante) não parece haver razão nenhuma para questionar essa afirmação.

O problema é que muita gente está convicta de que a Bíblia também afirma os enunciados “c” e “d” —embora, aqui, um bom número de pessoas conteste que esse seja o caso.

Mas antes de discutir enunciados “c” e “d”, passemos rapidamente pelos enunciados “e” e “f”.

A Bíblia afirma “e” (pelo menos um dos Evangelhos o faz no contexto da narrativa de Jesus) e não afirma “f”. Esse fato faz alguma diferença?

Bem, alguma diferença certamente faz. A questão é: para quem e quanta.

Evidentemente, para quem já é cristão, faz (alguma) diferença se a Bíblia afirma ou não afirma algo. Para o cristão, o fato de que a Bíblia afirma que Jesus foi concebido em uma virgem e nasceu dela por obra do Espírito Santo de Deus torna esse enunciado pelo menos merecedor de alguma atenção especial.

Se se trata de um cristão, digamos, conservador ou ortodoxo (os dois termos não são sinônimos, mas podem ser agrupados aqui), provavelmente esse fato é suficiente para justificar sua aceitação do enunciado “e”.

Se se trata de um cristão, digamos, liberal ou modernista (novamente os dois termos não são sinônimos, mas também podem ser agrupados aqui), o fato de a Bíblia afirmar esse enunciado pode não ser suficiente para que ele aceite o enunciado, embora provavelmente precise ter algum cuidado para se justificar, caso se recuse a aceita-lo.

Para quem não é cristão, porque é, digamos, ateu, cético, agnóstico, racionalista, secular, o fato de a Bíblia afirmar “e” não quer dizer grande coisa — ou não significa nada. Dado o conteúdo do enunciado, essa pessoa simplesmente rejeita a sua veracidade, pois o enunciado contraria, ou parece contrariar, sua experiência uniforme de como seres humanos funcionam (no caso, se reproduzem).

No caso do enunciado “f”, que não está na Bíblia (pelo contrário), muitos cristãos (por exemplo, todos os protestantes), e virtualmente todos os não-cristãos, o rejeitam. Apenas os católicos, ou pelo menos alguns deles, o aceitam, por se tratar de uma doutrina consagrada pela tradição, ainda que não tenha respaldo bíblico. E a aceitam apesar de a Bíblia ser clara ao dizer que Jesus tinha irmãos e irmãs — o que significa (provavelmente) que Maria teve outros filhos depois de Jesus. E a Bíblia não registra que a concepção e o nascimento dos irmãos de Jesus também tenham sido virginais.

Discutamos agora os enunciados “c” e “d”.

A Bíblia afirma que Jesus era filho de Deus? A resposta a essa pergunta não é muito clara. Em alguns poucos lugares a Bíblia registra que algumas pessoas afirmaram que Jesus era filho de Deus. Em outros lugares, registra que algumas pessoas afirmaram que ele era o Messias que havia de vir, ou “aquele que está por vir” (erxómenos). Mas mesmo que a Bíblia afirmasse, taxativamente, não em um relato mas nas palavras do autor da passagem, que Jesus era filho de Deus, ainda restaria a questão de determinar o que a expressão “filho de Deus” significa — porque, em outros lugares, todos nós, ou, pelo menos, todos os que creem, são chamados de filhos de Deus.

Em nenhum lugar a Bíblia afirma taxativamente, nas palavras do autor, que Jesus é Deus ou que é divino. Afirma-se, por exemplo, em João 1:1, que, “no princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus”. É possível extrair daí, com exegese sofisticada, a interpretação de que Jesus era Deus. Mas a passagem comporta outras interpretações também.

O que dizer?

Por um bom tempo, na História da Igreja, a questão da divindade de Jesus ficou, digamos, em suspenso. Por uma razão muito boa: os cristãos, como os judeus, dos quais descenderam, eram monoteístas. Afirmar que Jesus era Deus os colocava diante do sério problema de explicar como é que alguém que crê em dois deuses pode se considerar monoteísta — e abrir mão do monoteísmo parecia ser equivalente a chancelar o politeísmo dos pagãos.

A solução encontrada, lá pelo século quinto, foi dizer mais ou menos isto: Deus e Jesus possuem uma mesma e única natureza (substância, essência) divina mas são duas pessoas (hypostases) distintas, Deus Pai e Deus Filho. Depois o Espírito foi acrescentado, produzindo a doutrina da Trindade: um só Deus (uma só natureza / substância / essência divina compartilhada por três pessoas, o Deus Três-Pessoas-com-Uma-Só-Natureza [Deus Tri(ú)no].

Resolvido, em termos, pelo menos de modo a satisfazer a maioria que importava, o problema da divindade de Jesus, que eu chamo de o Primeiro Problema Cristológico, surgiram mais dois problemas, que só vieram a ser resolvidos, novamente em termos, no Concílio Ecumênico de Calcedônia (o quarto Concílio Ecumênico), em 425, a saber:

  • O Problema Trinitário, ou seja, a questão, com dois focos, (a) de como Deus pode ser Tri[ú]no, isto é, consistir de Três Pessoas, sem ser Três Deuses, e (b) de como Deus pode ter Uma Natureza Só, sem que as Três Pessoas se fundam numa só, ou seja, pareçam ser três pessoas sendo, na realidade, apenas três aspectos, ou modos, ou papeis de Uma Pessoa Só;
  • O Segundo Problema Cristológico, ou seja, a questão, também com dois focos, (a) de como Jesus pode ter Duas Naturezas, uma divina e outra humana, sem que sua pessoa se divida e separe, passando a ser Duas Pessoas distintas, e (b) de como Jesus pode ser Uma Pessoa Só, sem que as Duas Naturezas se misturem e confundam numa só.

A solução do Segundo Problema Cristológico foi, de certo modo, o oposto da solução do Problema Trinitário (decorrente da afirmação da divindade plena de Jesus na tentativa de solucionar o Primeiro Problema Cristológico), mas operou nos mesmos pressupostos metafísicos. No caso da discussão do Problema Trinitário, postulou-se a existência de duas (na verdade três) pessoas em uma só natureza (essência, substância). No caso do Segundo Problema Cristológico, postulou-se a existência, em uma só pessoa, mas com duas naturezas (essências, substâncias): a divina e a humana. Dessa forma, afirmou-se que Jesus (embora uma só pessoa) era “verdadeiramente Deus” e “verdadeiramente homem” (ou seja, tinha duas naturezas, ou essências, ou substâncias).

É evidente que ao falar em essência, substância, ou natureza, de algo (ou alguém), já se deixou muito para trás a linguagem relativamente simples do Novo Testamento para utilizar a linguagem sofisticada da filosofia grega (helênica, helenista). Traduzir nessa linguagem o que diz a linguagem concreta e metafórica do Novo Testamento é sempre extremamente complicado. Mas teólogos existem para fazer isso…

O desafio dos ortodoxos foi justificar a afirmação, no caso da Trindade, que Deus era constituído de três pessoas mas que possuía uma só natureza. Afirmar que Deus era uma pessoa só ou possuía três naturezas era cair em heresia: a heresia monarquianista (Antitrinitarismo) ou a heresia triteísta (Triteísmo).

O desafio dos ortodoxos foi justificar a afirmação, no caso do Segundo Problema Cristológico, que Jesus tinha duas naturezas mas era uma só pessoa só. Afirmar que Jesus tinha uma só natureza, ou que ele era de alguma forma constituído de duas pessoas, era cair em heresia: a heresia monofisista, no primeiro caso, ou a heresia nestoriana, no segundo.

Aqueles que afirmavam que Jesus tinha apenas uma natureza (os monofisistas: phusis é natureza em Grego — donde vem física), não duas, foram condenados pela heresia do Monofisismo.

Aqueles monofisistas que afirmavam que Jesus tinha apenas a natureza divina, e só a aparência de uma natureza humana, foram condenados (também) pela heresia do Docetismo (dokeo, em Grego, quer dizer parecer, aparentar).

Aqueles monofisistas que afirmavam que Jesus tinha apenas a natureza humana, e só a aparência de um ser divino, foram condenados (também) pelas heresias do Adocianismo (e outras variantes).

A discussão, na verdade, não parou aí. Se Jesus, embora uma só pessoa, tinha duas naturezas (essências, substâncias), o que dizer de sua vontade e de sua propensão a agir? Tinha ele uma só vontade, ou duas, uma decorrente de cada natureza? Uma só vontade (telos)? Uma só propensão a agir (energia)? Ou duas? O Monotelismo e o Monergismo (uma vontade e uma propensão a agir) foram considerados heresias  em favor do Duotelismo e do Duergismo (duas vontades e duas propensões a agir).

Mas se Jesus tem duas vontades e propensões para agir, uma divina e outra humana, surge outro problema: como elas se relacionavam uma com a outra, qual prevalece, em caso de conflito, em que condições?

E assim vai. “Assim caminha o desenvolvimento da doutrina cristã” [3].

2. Parêntese com um Texto de William Lane Craig

A seguir uma discussão bastante interessante do Monotelismo, pelo teólogo e apologeta contemporâneo William Lane Craig. O Monotelismo é ponto de vista que foi considerado herético pelo Terceiro Concílio Ecumênico, realizado em Constantinopla (381). Apesar dessa consideração, Craig não tem maior problema em declarar que o referido concílio errou em sua decisão e em esclarecer as razões por que pensa assim. Ao fazer isso, Craig segue nas pegadas de ninguém menos do que Lutero, que, diante da Dieta de Worms, declarou, com todas as letras, que os Concílios erram – como também erra o Papa.

Monotelismo

PERGUNTA

Olá Dr Craig!

Estou lendo seu livro Philosophical Foundation for a Christian Worldview (Filosofia e Cosmovisão Cristã [Edições Vida Nova, 2005]). Infelizmente, minha pergunta não foi respondida quando eu estava no seminário fazendo M.Div. uma década atrás. Após sua explicação, estou mais convencido de que a sua posição, o Monotelismo (p. 611), é a mais correta, apesar dessa conclusão ser apenas uma conclusão tentativa. Monotelismo está sempre ligado com Monofisismo. Até onde eu entendo, o Monotelismo não é, necessariamente, uma implicação do Monofisismo. O Terceiro Concílio de Constantinopla condenou tanto o Monofisismo quanto o Monotelismo como heréticos. (A maioria dos evangélicos reconhece esse Concílio Ecumênico?) O Dr. Norman Geisler também reconhece o Monotelismo como herético (Systematic Theology (Teologia Sistemática, Volume 2 [Grand Rapids, MI: Bethany House, 2003] p. 296). Minha pergunta é a seguinte: você não se preocupa com o fato de que alguns evangélicos consideram você um herege por causa da sua crença no Monotelismo? Como eu estou mais convencido de sua explicação, eu não quero ser considerado como um herege nesse caso.

RESPOSTA

William Lane Craig:

Nenhum cristão sincero quer ser considerado um herético. Mas nós, protestantes, reconhecemos apenas a Escritura como nossa regra de fé final (o princípio da Reforma de sola scriptura). Portanto, nós trazemos até mesmo as afirmações de Concílios Ecumênicos perante o crivo da Escritura. Sempre existe uma grande hesitação em discordar de pronunciamentos de um Concílio Ecumênico. Ainda assim, como nós não os vemos como detentores de autoridade divina, estamos abertos para a possibilidade de que eles erraram em algumas coisas. Parece-me que ao condenar o Monotelismo como uma doutrina incompatível com a crença cristã a igreja foi além de seus limites.

O que é Monotelismo? É a doutrina que afirma que o Cristo encarnado tem uma única faculdade de vontade. Em contraste, o Duotelismo ensina que o Cristo encarnado tem duas faculdades de vontade, uma associada com sua natureza humana (sua vontade humana) e uma associada com sua natureza divina (sua vontade divina). O Terceiro Concílio Ecumênico, realizado em Constantinopla (381) condenou o Monotelismo, promulgando como obrigatório para Cristãos crer em duas vontades em Cristo. Eu suspeito que a maioria dos evangélicos Cristãos declare fidelidade com seus lábios ao Terceiro Concílio e ao Duotelismo sem ter refletido seriamente a respeito desse assunto.

Alguns de nós, no entanto, consideram o Monotelismo como, pelo menos, uma opção legítima para o Cristão bíblico, sem dizer que seja verdade. O Concílio aparentemente pensou que negar uma vontade humana de Cristo implicaria que lhe faltava uma natureza humana completa, ou seja, Cristo não seria verdadeiramente homem nesta hipótese. Portanto, para proteger a integridade da natureza humana de Cristo, o Concílio promulgou o Duotelismo como algo mandatório para uma crença cristã ortodoxa. A preocupação com a verdadeira humanidade do Cristo encarnado é louvável e importante. A doutrina cristã da encarnação requer que Cristo seja verdadeiramente homem e verdadeiramente divino. Mas por que pensar que o fato de Cristo ter uma única vontade reduziria sua natureza humana?

O que o Concílio presumia, e o que parece duvidoso para muitos, é que a faculdade da vontade pertence propriamente à natureza de alguém em vez de pertencer à pessoa. É por isso que o Concílio pensou que se a natureza humana de Cristo não tivesse a faculdade da vontade, então ela não seria uma natureza humana verdadeira e completa. Em contraste, me parece quase óbvio que a vontade é uma faculdade de uma pessoa. São pessoas que têm livre arbítrio e que o exercitam para escolher isso ou aquilo. Se a natureza humana de Cristo tinha sua própria vontade, o que significaria que Cristo tinha, literalmente, duas vontades, como o Concílio afirmou, então existiriam duas pessoas, uma humana e uma divina. Mas esta é a heresia conhecida como Nestorianismo, que divide Cristo em duas pessoas. Eu não consigo compreender como a natureza humana de Cristo poderia ter uma vontade própria, distinta da vontade da Segunda Pessoa da Trindade, e não ser uma pessoa.

A pergunta, então, é se Cristo pode ter uma vontade, porém duas naturezas. Ou ter uma única vontade implicaria na heresia chamada Monofisismo, a doutrina que Cristo tinha uma única natureza? No Concílio de Calcedônia, a Igreja condenou o Monofisismo e promulgou o Duofisismo, a doutrina que Cristo tinha duas naturezas, humana e divina. A pergunta não é, como você colocou, se o Monotelismo é, necessariamente, uma implicação do Monofisismo — parece óbvio que sim, pois se há apenas uma pessoa e uma natureza no Cristo encarnado, de onde viria a segunda vontade? — mas se o Monofisismo é, necessariamente, uma implicação do Monotelismo, como o Concílio acreditava.

Eu não penso que é. No capítulo sobre a encarnação, no livro Filosofia e Cosmovisão Cristã, eu dou um possível modelo da encarnação de acordo com o qual a natureza humana de Cristo torna-se completa através de sua união com a Segunda Pessoa da Trindade. Como só existe uma pessoa em Cristo, existe apenas uma faculdade da vontade, e esta faculdade serve tanto à humanidade quanto à divindade de Cristo, sendo exercitada por meio tanto da natureza humana quanto da natureza divina. Assim, Cristo tem duas naturezas completas, mas uma única vontade, da mesma forma que – e porque – ele é uma única pessoa.

Portanto, embora eu não goste de contradizer os decretos de um Concílio Ecumênico, acredito que o perigo de cair em Nestorianismo é muito maior do que o perigo de cair em Monofisismo. Eu acho que podemos coerentemente e biblicamente ser monotelistas sem sermos monofisistas.

William Lane Craig [4]

3. O Sentido Etimológico dos Termos “Heresia” e “Ortodoxia”

O termo “heresia” nos vem do Grego, através do Latim.

Em Grego, o termo αἵρεσις (hairesis, em transliteração para o nosso alfabeto) significava, originalmente, escolha, ou coisa escolhida, ou até mesmo grupo dos que fizeram uma escolha. Assim, podia significar uma aceitação de alguma ideia, crença, doutrina ou teoria, ou até mesmo, uma seita: o grupo daqueles que aceitavam um conjunto determinado de ideias, crenças, doutrinas, teorias.

No Novo Testamento o termo foi aplicado aos Fariseus, aos Saduceus, e mesmo aos Cristãos, entendidos, todos eles, como seitas do Judaísmo.

Em Latim o termo haeresis veio a significar forma de pensar, escola filosófica — inicialmente sem se indicar se a forma de pensar ou escola filosófica era considerada correta ou desviante.

Com o tempo, já na era cristã, o termo veio a ser usado para se referir a crenças e doutrinas que se desviavam da opinião (δόξα, termo grego que, transliterado, dá doxa) geralmente aceita, ou, com o tempo, do ensinamento, instrução, ou doutrina (διδαχń, em Grego, transliterado como didaché, ou, ainda, doctrina, em Latim) tido como certo, correto, verdadeiro, oficial (oρθός, transliterado como orthós): a “ortodoxia”.

III. A Construção da Ortodoxia

1. Das Heresias à Ortodoxia

Mencionei, em outros textos, que o movimento que veio a se tornar o Cristianismo, durante boa parte do primeiro século da era que veio a ser conhecida como cristã, foi visto, inicialmente, e de forma correta, como uma seita judaica — na verdade, uma heresia do Judaísmo… Diferentemente dos Fariseus e dos Saduceus, que no primeiro século já eram seitas (ou formas de pensar) judaicas bem aceitas e assimiladas, os seguidores de Jesus de Nazaré não foram bem aceitos na Palestina, durante o primeiro século (até que os judeus foram expulsos da Palestina no ano 70).

A história nos mostra, e uma leitura atenta do livro de Atos dos Apóstolos comprova, que, logo depois da morte de Jesus, seus seguidores eram quase que exclusivamente judeus. Mas havia basicamente dois tipos de judeus naquela época:

  • Os judeus que moravam na Palestina (em especial na Judeia e na Galileia), que falavam hebraico ou aramaico, e eram cumpridores fieis e zelosos das leis e dos regulamentos judaicos;
  • Os judeus que moravam fora da Palestina (na Diáspora), que falavam grego, e que, embora ainda seguidores da religião judaica, adotavam uma religião à qual se haviam misturado elementos do pensamento helênico e helenista, e cujos costumes, pela sua convivência diária com gentios, não eram mais tão rigorosos.

É de esperar que houvesse certa animosidade entre uns e outros, animosidade essa que aumentava nas ocasiões em que os judeus helênicos visitavam o Tempo de Jerusalém.

Os cristãos que habitavam a Palestina se viam, inicialmente, como judeus, não como membros de uma outra religião. Como os demais, iam ao Templo, observavam as normas alimentícias, circuncidavam-se (no caso dos homens, naturalmente), etc. E, no primeiro século, suas Escrituras eram as Escrituras Judaicas.

Mas os seguidores de Jesus logo se esparramaram por cidades fora da Palestina, que eram helênicas, nas quais os judeus existentes eram judeus helênicos. Em Antioquia, diz o livro de Atos, os seguidores de Jesus foram pela primeira vez chamados cristãos. Nessas cidades, muitos judeus helênicos e muitos gentios (os chamados de “pessoas tementes a Deus”) aceitaram as ideias que os seguidores de Jesus lhes apresentavam e se converteram, sendo batizados.

Por admitirem, entre seus adeptos, judeus helênicos (da Diáspora) e até mesmo gentios, os seguidores de Jesus que viviam em cidades fora da Palestina sofreram discriminação por parte daqueles que viviam na Palestina, em especial em Jerusalém, que exigiam que eles seguissem as normas alimentícias e outras, e, no caso dos homens, fossem circuncidados.

Por volta do ano 49/50, em Jerusalém, um encontro entre Paulo, Pedro e Tiago (o irmão de Jesus), supostamente acertou essa questão (vide Atos 15 e Gálatas 2). Mas mesmo depois desse “acerto” ainda houve conflitos entre os seguidores de Jesus da Palestina e os das cidades helênicas.

Mesmo em Jerusalém, seguidores de Jesus que eram suspeitos de não aceitar totalmente a Lei Judaica foram perseguidos, e, no caso de Estêvão, assassinados (vide o livro de Atos, capítulo 7).

Os primeiros cinco séculos da história cristã, até, basicamente, o ano de 476, que marca, para muitos, o fim da Antiguidade e o início da Idade Média, foram um período que viram a transformação daquilo que era, inicialmente, uma heresia judaica em uma outra religião, a religião cristã, e viram a fixação da ortodoxia dessa religião.

2. Pluralismo e Relativismo de Pontos de Vista — e Tolerância

É evidente que, em contextos pluralistas e relativistas, isto é, em que vários pontos de vista divergentes são tolerados em relação a uma mesma coisa (pluralismo), e em que (indo além da mera tolerância) se acredita que um ponto de vista é tão bom, certo, correto, ou verdadeiro quanto os demais (relativismo), não faz sentido falar em heresia — exatamente por inexistir, nesse contexto, a ideia de um único ponto de vista correto ou verdadeiro (ortodoxia) em relação a algum tema. Tudo é tolerado, tudo é admitido. Não havendo ortodoxia, não há como haver heresia. Verdade e erro ficam, ambos, no mesmo patamar, por não haver (assim se acredita) como distingui-los.

Em um contexto assim, a única coisa não tolerada é a intolerância. O intolerante se baseia em uma pretensa ortodoxia — isto é, a postura daqueles que, por estarem convictos de que estão certos e de que estão de posse da verdade, não admitem divergência — passam a resistir ao pluralismo e, com maior razão, ao relativismo.

De certo modo, na época em que nascia o Cristianismo o Império Romano era pluralista, relativista e, por isso, extremamente tolerante — mas os judeus, embora fossem tolerados pelos romanos, não tinham postura igualmente tolerante, porque se julgavam o povo escolhido, os únicos a quem o Deus único e verdadeiro havia se revelado. Como diz Rubem Alves, “a linguagem religiosa sente vertigens diante de qualquer tipo de pluralismo e relativismo” [5].

A antipatia dos romanos para com o judeus, e, depois, para com os cristãos, tem origem nesse fato.

3. Ferramentas para a Construção da Ortodoxia Cristã

Como vimos atrás, no primeiro capítulo deste artigo, muita gente acredita que a maioria dos cristãos nos cinco ou seis primeiros séculos da era cristã subscrevia àquilo que hoje se considera ortodoxia em sua doutrina, as diversas heresias aparecendo apenas nas periferias, e sendo rapidamente combatidas e rechaçadas pela maioria ortodoxa.

Vimos, também, que provavelmente a coisa não era bem assim, e que o mais certo é supor que por um bom tempo vicejaram várias doutrinas ou escolas de pensamento que, posteriormente, quando fixada a ortodoxia, foram declaradas heréticas, mas que, antes dessa fixação, competiam de forma razoavelmente livre entre si. A ortodoxia, neste ponto de vista, foi uma construção lenta e cuidadosa que exigiu, por parte das lideranças do cristianismo nascente, a criação de várias ferramentas, entre as quais as mais importantes são (repetindo o que já foi dito atrás):

  • A criação dos Concílios Ecumênicos;
  • A definição de fórmulas que definiam, de forma mais ou menos telegráfica, as principais doutrinas do cristianismo nascente — as chamadas “regras de fé” (regulae fidei), usadas por ocasião do batismo, e, que, oportunamente se tornaram os Credos;
  • A definição, ou o fechamento, do Cânon do Novo Testamento;
  • A concentração de poder nas mãos do Clero, em especial dos bispos, para definir, entre outras coisas, o que é pensamento ortodoxo e o que é pensamento herético.

A convocação de Concílios Ecumênicos só se fazia necessária quando os bispos não se entendiam. Se havia consenso entre eles, não havia razão para convocar um Concílio Ecumênico. Mas, no caso de dissenso, em especial em relacão a questões essenciais, a convocação de um Concílio Ecumênico onde as divergências eram debatidas e se tentava chegar a um consenso era fundamental. Os dois principais Concílios Ecumênicos foram o de Niceia, em 325, o primeiro Concílio Ecumênico, e Calcedônia, em 451, o quarto. Além dos dois concílios realizados entre Niceia e Calcedônia, houve mais três, depois de Calcedônia, antes que a Igreja se dividisse em 1054.

É fácil de lembrar: são quatro “C’s”: Concílio, Credo, Cânon e Clero.

IV. Ortodoxia e Repressão: Engaiolando o Pensamento

1. Tecnologia e Religião

Tecnologia e religião são duas coisas que, à primeira vista, parecem não ter muita relação uma com a outra. No entanto, uma das tecnologias mais importantes para a humanidade, a prensa de tipo móvel (tipografia), criada por Johannes Gutenberg, no ano de 1455, ou por ali, foi inventada com uma motivação claramente religiosa – mais especificamente, cristã.

Em primeiro lugar, é conhecido de muitos o fato de que o primeiro livro impresso por Gutenberg em sua máquina foi a Bíblia.

A alguns isso parecer apenas um fato fortuito, decorrente apenas da popularidade da Bíblia. Mas não é.

Se fomos ler o prefácio que Gutenberg escreveu à sua Bíblia, encontraremos nele uma segunda razão para a tese de que sua motivação, ao inventar a tipografia, era profundamente religiosa. Eis o que ele diz:

““Deus sofre por causa da multidão de almas que sua palavra não pode alcançar. A verdade da nossa religião está aprisionada nas páginas de uns poucos livros copiados a mão, e isso limita e mesmo confina, em vez de esparramar, um tesouro que deveria ser público e estar nas mãos de todo mundo. Vamos quebrar o selo que hoje prende as palavras santas e dar asas à verdade, para que ela possa conquistar, a partir de agora, através da palavra, cada alma que venha ao mundo – palavra não mais copiada lenta e custosamente por mãos que podem ser facilmente paralisadas, mas multiplicada como o vento por uma máquina que nunca se cansa” [6].

A intenção de Gutenberg era, portanto, mais do que apenas religiosa: era missionária.

É verdade que Gutenberg, aparentemente, concebia o trabalho missionário como se limitando a divulgar a Bíblia. . . ainda por cima em Latim, uma língua que a maioria das pessoas comuns não lia, naquela época. (Na verdade, a maioria das pessoas não lia em nenhuma língua naquela época). O trabalho de Gutenberg teve de ser completado, por exemplo, por Martinho Lutero, que devotou alguns anos de sua vida traduzindo a Bíblia para a língua do seu povo, o Alemão.

2. Teologia e Educação

Apesar de Lutero defender a tese de que cada um tem a liberdade e o direito de interpretar a Bíblia por si próprio, segundo a sua consciência, iluminada pela razão, ele não era ingênuo a ponto de crer que apenas colocar a Bíblia na mão do povo, ainda que impressa numa língua que o povo oralmente entendesse, era suficiente. Ele foi adiante: criou escolas ao lado das igrejas luteranas para que crianças e adultos aprendessem a ler, e, assim, pudessem ler a Bíblia. E ele tinha consciência de que, mesmo sabendo decodificar a linguagem escrita, muitos leem, mas não entendem o que leem (vide Atos 8:26-27: “Entendes tu o que lês?”). Por isso, para ele, a Igreja Protestante (em especial a sua, a luterana) tinha um “ministério educacional”, entre outros. Na Igreja Presbiteriana, calvinista, o pastor é até mesmo chamado de o “presbítero docente”… A igreja e, nela, o pastor, devem ajudar o crente a entender o que lê (e até mesmo o que ouve).

Há uma diferença sensível entre afirmar, no estilo Magister dixit, que o Papa ou o clero são os únicos credenciados e autorizados a interpretar a Bíblia, e que, no caso do Papa, sua interpretação, quando feita oficialmente (ex cathedra), e envolvendo questão de fé ou de prática (moralidade), é infalível, e, portanto, inerrante, e afirmar, por outro lado, que cada um tem a liberdade e o direito de interpretar a Bíblia por si, mas pode estar errado, e que, portanto, é preciso disponibilizar, para quem precisar ou desejar, apoios, ferramentas e serviços para que possa entender o que lê (o que ouve, o que vê…).

3. Protestantismo e Ortodoxia

É verdade que, no devido tempo, um século e pouco depois de Lutero e de Calvino, também o Protestantismo desenvolveu uma Ortodoxia, uma ideia de qual é a recta doctrina que a Bíblia contém… E a ideia continua a prosperar entre nós…

Rubem Alves escreveu dois magníficos livros sobre esses temas:

Primeiro, Protestantismo e Repressão (publicado em 1979, pela Editora Ática). Cerca de 25 anos depois, em 2005, o Rubem reeditou esse livro com um novo título, mais genérico: Religião e Repressão (publicado agora pela Edições Loyola, editora católica, em coedição com a Teológica).

Segundo, Dogmatismo e Tolerância (publicado em 1982, ironicamente por uma outra editora católica, a Paulinas).

4. Ortodoxia e Intolerância

Há duas atitudes básicas em relação à verdade: a de quem constantemente a busca, e a de quem acredita que já a encontrou.

O ortodoxo é aquele que acredita que já encontrou da verdade e que está de posse dela.

A ideia de que encontramos a verdade não seria tão perigosa se não fosse acompanhada da crença de que somos os únicos a tê-la encontrado e que temos posse exclusiva dela. Quando nos imaginamos os únicos possuidores da verdade – da recta doctrina – e a verdade da qual somos exclusivos possuidores é a única, a tendência é nos tornarmos dogmáticos: rejeitamos a ideia de que a verdade pode ter muitas facetas, que é possível vê-la de várias perspectivas, e que, por isso, é preciso sempre continuar a busca-la. . .

Se não adotarmos essa atitude – podemos chama-la de liberal – o resultado é a intolerância. Imaginamos que não devemos tolerar pontos de vista divergentes, porque eles serão necessariamente errôneos, visto que a verdade está exclusivamente conosco.

5. Intolerância e Repressão

Da intolerância para a repressão a distância é mínima. Reprimir aquilo de que discordamos parece até uma virtude para aquele que se acredita dono da verdade – pois seria uma forma de evitar ou extirpar o erro.

Provavelmente foi com base num raciocínio mais ou menos assim que Calvino concluiu que não deveria impedir que Michel Servetus fosse queimado numa fogueira.

O Rev. João Dias de Araújo, falecido recentemente, escreveu em 1975 um livrinho chamado Inquisição sem Fogueiras, sobre os expurgos que a Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) fez nos seus quadros, presentes e futuros, durante a Ditadura Militar, na época ainda em pleno vigor (com um luterano na Presidência da República) [*].

6. Homenagem a Rubem Alves

Na dedicatória que apôs à cópia de Protestantismo e Repressão que me deu em 1979, ano de sua publicação (faz 38 anos este ano de 2017), o Rubem Alves escreve: “Ao Eduardo, em memória de um passado comum”. A dedicatória vem logo acima do mote do livro, uma linda passagem de Leszek Kolakowski, muito amada pelo Rubem, e que ele citou em mais de um livro:

“Por que deveria qualquer pessoa, inflexivelmente convencida da verdade exclusiva dos seus conceitos relativos a qualquer e a todas as questões, estar pronta a tolerar ideias opostas? Que bem pode ela esperar de uma situação em que cada um é livre para expressar opiniões que, segundo o seu julgamento, são patentemente falsas e portanto prejudiciais à sociedade? Por que direito deveria ela s abster de usar quaisquer meios para atingir o alvo que ela julga correto?”

Rubem Alves ressalta, em sua “Nota Preliminar” que a “Ortodoxia Protestante”, com seus “mecanismos de controle de pensamento e repressão do comportamento, [está] em evidente oposição à tradição ideológica clássica do Protestantismo, com sua ênfase na liberdade de consciência, livre exame e democracia”.

Entre Protestantismo e Repressão, de 1979, e sua reedição como Religião e Repressão, em 2005, Rubem Alves mudou profundamente sua atitude para com a religião… Deixou de trata-la como objeto de um discurso acadêmico, científico, rigoroso, para trata-la mais como poesia, como literatura. . .

Na nota “Trinta Anos Depois” cita Fernando Pessoa e conclui que “somos assim”: sonhamos voar, mas temos medo das alturas, sonhamos com a liberdade, mas preferimos o abrigo seguro das certezas…

Afirma, na mesma nota, que as religiões, em regra, têm tendência de se tornarem gaiolas que procuram prender pássaros que gostam de voar. Em geral, os hereges “são os pássaros que recusam as gaiolas de palavras que os prendem, que falam palavras proibidas”.

Continua ele, em espírito de confissão: “Vivi, durante muitos anos, numa gaiola de palavras. Eu gostava dela. Não me sentia engaiolado. Sentia-me protegido. Minha gaiola era minha armadura”.

Sua nota é um desabafo… Registra que, durante a Ditadura Militar, os grupos protestantes que, no Brasil, “anda[vam] sempre a pé”, “se apressaram a montar na garupa dos militares” – e, além de expulsar de seus seminários os que consideravam hereges, resolveram entrega-los ao poder secular “sob a acusação de subversão e comunismo”.

Ironicamente, a Igreja Católica que, na época da Reforma, declarou Lutero herege e o excomungou e perseguiu, por pouco não o colocando na fogueira, tornou-se, no Brasil da Ditadura Militar, “uma gaiola com portas abertas”, encarnando, como diz o Rubem Alves, “o espírito libertário que se encontra nas origens do protestantismo”.

Mas o Rubem conta que um dia perguntou a Dom Helder Câmara se não haveria “um lugarzinho” para ele, Rubem, na Igreja Católica… A resposta de Dom Helder foi realista, sem nenhum romantismo: “Não se engane. É tudo igual…”. Triste. A porta da gaiola gradualmente se fechou e calou os que “ensaiavam cantos diferentes”, aos quais se impôs o famigerado “silêncio obsequioso”.

Pior do que tapar a boca de alguém é exigir que ele próprio a mantenha fechada. . .

“Para engaiolar a verdade”, conclui Rubem Alves, “é preciso engaiolar a liberdade e o pensamento”.

Que falta ele já está nos fazendo e, muito mais, ainda vai nos fazer [7].

V. Notas

[1]  A tese de que, nos cinco ou seis primeiros séculos do Cristianismo, basicamente prevaleceu diversidade e não unidade é geralmente chamada de “Tese de Bauer”, em homenagem ao autor que primeiro a formulou com clareza: Walter Bauer (1877-1960), teólogo e historiador alemão. Mais próximo de nós no tempo, Bart D. Ehrman, autor contemporâneo, se tornou o maior divulgador dessa tese em inúmeros livros, facilmente encontráveis na livraria, mesmo em Português. Mas o maior historiador que a Igreja Cristã já teve, Adolf von Harnack (1851-1930), preparou o terreno para que essa fosse formulada, quando escreveu o seu livro monumental sobre a história do pensamento cristão (algo que fez em 1886-1890): Lehrbuch der Dogmengeschichte, em três volumes, no original, traduzido para o Inglês sob o título History of Dogma, a partir da terceira edição, de 1900, em sete volumes (para adequar melhor ao conteúdo da obra).

[2]  O capítulo de Introdução do presente artigo representa, no essencial, um artigo menor que publiquei em 4 de Fevereiro de 2015, com pequenos acréscimos feitos dias depois, em 16 de Fevereiro do mesmo ano.

[3]  A primeira seção do segundo capítulo do presente artigo representa, no essencial, um artigo menor que publiquei em 16 de Fevereiro de 2015 (dia em que fazia 51 anos que assisti à minha primeira aula no Seminário Presbiteriano de Campinas).

[4]  Esse texto foi retirado da Web, podendo ser encontrado no site http://www.reasonablefaith.org/portuguese/Monotelismo.

[5]  Rubem Alves, Dogmatismo e Tolerância, p.26.

[6] David T. Bourgeois, Ministry in the Digital Age: Strategies and Best Practices for a Post-Website World (InterVarsity Press, Downers Grove, 2013 / Amazon, Kindle e-book), Localização 57 no e-book..

[7]  O quarto capítulo do presente artigo representa, no essencial, um artigo menor que escrevi em 29 de Julho de 2014, logo depois da morte do meu amigo Rubem Alves, mas só o publiquei em 9 de Julho de 2014. Revisei o material em 20 de Maio de 2015 e agora, em 12 de Março de 2017, para inserção neste artigo maior.

[*] Versão anterior deste artigo indicava, por lapso, Joás Dias de Araújo como o autor do livro, em vez de seu irmão João. Ambos foram pastores. Agradeço a Wertson Brasil de Souza por ter me alertado para o erro em comentário a este artigo, que é preservado, abaixo. Salto, 29 de Março de 2017.

Escrito em São Paulo, 29 de Julho de 2014, publicado em São Paulo, 20 de Maio de 2015, e revisado em Salto, 13 de Março de 2017

Eduardo Chaves

2 Comments

  1. Caro professor, bom dia.

    Você faz a seguinte citação: “O Rev. Joás Dias de Araújo, falecido recentemente, escreveu em 1975 um livrinho chamado Inquisição sem Fogueiras, sobre os expurgos que a Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) fez nos seus quadros, presentes e futuros, durante a Ditadura Militar, na época ainda em pleno vigor (com um luterano na Presidência da República).”

    Não foi o Rev. Joás Dias de Araújo quem escreveu Inquisição sem Fogueiras, mas seu irmão Rev. João Dias de Araújo. Joás permaneceu na IPB até a sua morte. Era irmão de João Dias. Este foi um dos fundadores da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil – IPU de cujo Conselho Coordenador tenho a a honra de ser o Moderador.

    Fraternalmente em Cristo,

    Presb. Wertson Brasil de Souza

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